vovó no Hospital Municipal de Udia, um dia antes de sair da internação
Este foi o natal desse ano com a Vovó Silvina. Uma senhora que é Rocha! Silvina Rocha Melo, nasceu em Monte Carmelo, 1917. "Foi seu avó quem levou energia elétrica pra cidade". Vovó mudou-se pra Araguari, onde se casou com meu falecido avô Walderico. Mulher honesta e trabalhadeira, sempre lutou na vida em todos os aspectos, emocional, financeiro, familiar, profissional. Foi costureira de mão cheia, lembro-me bem dos seus moldes feitos com aquele papel rugoso rosa ou marrom. Tudo feito com muito capricho. Sentada na máquina de costura, estava sempre com algum pedaço de linha na boca. Fazia os nossos pedidos caseiros de reformas de roupas, customizava. Vovó fez inúmeros tapetes de crochê também, tenho um que é um P (de Paula). Fez infinitos biquinhos de crochê nas toalhas de rosto bordadas. Essa Vovó que limpava nossos pés sujos de brincar no chão, com pano úmido; Vovó que colocava as roupas brancas pra quarar no sol.Fazia misto quente, mingau de aveia e ovo quente pra gente, com o maior carinho. E seu charuto (mafufo) feito na folha de repolho então que delícia! Minha avó me ensinou muita coisa. Ela conversava comigo sobre todos os assuntos possíveis, desde histórias da fazenda onde ela foi criada, passando pela lavanderia que tinha em Araguari "que tinha 13 empregados", chegando até as experiências recentes do cotidiano em que vivíamos juntas na casa de minha mãe. Até pouco tempo a Vovó Silvina varria o quintal cheio de folhas das jabuticabeiras. Levava-a pra tomar café e almoçar, saíamos passeando com o Plock (o cachorro da minha mãe) na pracinha perto de casa, a pé. A Vovó que viajou muitas vezes pra Aparecida do Norte nas excursões que meu avó realizava, tinha uma fé imensa, devota de vários santos católicos e Nossa Senhora , reza ainda Ave Maria, Pai Nosso e o Credo (este último eu não sei por completo, tenho que acompanhá-la para rezar), mas não com tanto impulso quanto antes. Chegou aos 97 anos lúcida! Tem suas dificuldades próprias da idade e não tem se manifestado muito mais como antigamente devido complicações de saúde mas o que fica muito forte pra mim são os seus ensinamentos: agradecer pela comida todos os dias, ter fé em Deus, valorizar a si mesmo, amar o próximo, zelar pelo seu nome na praça, ter boa educação com os outros, não levantar a voz para os pais ou mais velhos, ter capricho, respeitar os membros da família, não falar mal das pessoas da família ou do lugar de onde o outro nasceu, ser organizada (ordeira), dar bom dia ao próximo, não lavar os cabelos a noite, etc. Vovó eu te amo muito! Você é muito especial pra mim! A senhora que "curou o umbigo dos 4 (Flávio, Carla e Lívia)" foi uma referência muito importante na nossa criação. Nos mostrou como é viver, com amor. Algumas frases memoráveis de Vovó: "Obrigada Senhor pela comida que nos destes, dai a quem não tem" (nas refeições a mesa). Quando estive cuidando da Vovó no pós-operatório da perna quebrada, pude vivenciar um contato único e profundo com este ser humano iluminado. Eu fiz tudo o que eu pude fazer pra que ela ficasse bem enquanto estava comigo: o sentimento de compaixão e cumplicidade foi presente na nossa relação e sei que ela será muito bem cuidada também quando chegar aos céus...Minha avó é mais que especial: a humildade a fez ser uma pessoa inesquecível. Obrigada Deus por ter permitido viver perto dessa pessoa tão maravilhosa! Sou grata por cada segundo ao seu lado.O que eu fiz pra ajudá-la foi o mínimo que eu pudia fazer para retribuir todo amor que ela já exerceu comigo e fiz o meu melhor, fiz o máximo que eu extraí do meu lado bom, do meu lado amigo, do meu lado carinhoso de ser, neta.Existe muito preconceito e descaso com os idosos no Brasil, mas acredito que podemos aprender muito com eles!
Escrevi alguns diários sobre esses momentos com ela, envolvendo atividades simples mas fundamentais para o dia-a-dia de um idoso. Aqui vão alguns deles:
Sair de casa
sair de casa à passeio ou até mesmo acompanhando alguma tarefa de um familiar ativa os sentidos de pertencimento social
quando oportunas as vezes, saímos para tomar café da manhã juntas no supermercado D'Ville na Av. Getúlio Vargas, o mesmo dispõe de uma padaria/rotisseria.
ao chegar ela cumprimenta a atendente. ela se senta e se conforta na cadeira, procura um lugar seguro para apoiar sua bengala.percebe o espaço, as cores, os textos anunciando os produtos do supermercado em promoção. ela observa o movimento das pessoas comprando.ela solicita sempre um café e um pão de queijo. come e enquanto isso conversa sobre outros assuntos que não domésticos. os fatores externos visuais, texturas, espaços influenciam na sua experiência diária enriquecendo-a em cada detalhe.
após a refeição ela questiona o valor e faz cálculos matemáticos. ela ainda tem noção do valor da moeda corrente no país. às vezes ela troca o nome da moeda ou sua questão numérica (cruzeiro, cruzado, 1 real 1 mil), mas a matemática não falha.
a variação desses lugares de visita externa também é bem-vinda considerando que mudando o local também mudarão as referências visuais e as impressões sobre ele.
quando vou estacionar o carro ela faz questão de dizer que posso parar na vaga para IDOSOS porque ela é idosa e eu estou com ela. ou seja, ela percebe a sinalização de trânsito. o que é mais uma referência da realidade e do funcionamento normal das coisas.
Rezar em frente a TV
rezar a missa todos os dias através do canal REDE VIDA
além de ser prazeroso à ela por causa da sua incrível memorização do passo-a-passo de uma missa católica e das falas, vezes extensas, de oração e partes da Bíblia, ela adquire uma relação com o horário do programa na TV.
a simulação de uma missa pela TV é algo hiperrealista pois a água é bentificada. ela deixa um copo ao lado da TV com água e benze esse líquido potável no momento da bênção. e bebe.todo o ritual é estabelecido e marca a sua fé diante de tantos anos de devoção à santos e ao próprio Jesus Cristo.
o volume deve ser alto porque ela não escuta se for baixo e a intenção é ela interagir com o programa, escutar e responder. ela até responde em voz alta. mas ela não consegue se programar, colocar um despertador para tocar na hora do programa. então se faz necessário ligar a TV para ela, também resiste em manipular elementos eletrônicos na falta de conhecimento de seu funcionamento devido ao avanço desenfreado das tecnologias atuais.
Ouvir rádio
ouvir o rádio revitaliza a memória
durante alguns dias percebi que a Vovó ficava deitada no sofá da sala de TV no silêncio, na solidão com ela mesma.
sugeri e liguei o rádio da mesma sala uma primeira vez. independente da estação escolhida, coloquei o som para que ali enquanto ela deita-se (é muito comum vê-la deitada)ela possa estar em contato com a realidade das coisas cotidianas.
faz muita diferença para a sua memória que através do canal de sentido auditivo ela possa lembrar de um cantor, ou uma música, um ritmo, uma situação, uma rua da cidade pela qual passou que é anunciada na propaganda. até mesmo as horas que são informadas periodicamente à trazem pra realidade daquele dia vivido. os nomes que são falados, as letras da músicas.
inclusive no terceiro dia em que o som do rádio foi introduzido, ela depois veio me contar uma música muito engraçada que fazia uma rima: "pelo ronco do motor ela sabe quem chegou". além da memorização da letra da música ela memorizou seu ritmo.
basta dar evasão sensorial através dos nossos canais de sentidos que as experiências acontecem.
por ela mesma não ligaria o radio, ela preferia o silêncio ao barulho pois nem ela mesma sabia da potência que aquilo tem.
Escrever cartas
cartas da Vovó Silvina
hoje propus a ela que escreva todos os dias uma carta à alguém da família. isso vai estimular sua memória e escrita, vocabulário.
depois que ela fez o óculos de grau para perto ela ainda não usou, o oculista disse que seria depois de 3 dias que começaria a funcionar. de fato se ela tentar pode melhorar na escrita e consequentemente aumentar sua auto-estima.
escrevendo para pessoas familiares ela estará se valorizando e pensando em pessoas que a querem bem. a primeira carta veio pra mim, porque eu pedi. amanhã eu vou propor que ela escreva a segunda carta. mesmo com toda sua dificuldade ela escreveu uma página inteira.
me impressiona sua capacidade de assimilação dos fatos e das coisas com seus 96 anos.
Plantas
jogar água nas plantas do quintal e garagem de casa
se todos os dias ela fizer alguma atividade física, mesmo que mínima isso vai aumentar sua auto estima e vai fazer sentir útil no ambiente doméstico.
nada custa aguar o jardim com a mangueira que já está instalada na torneira, em ambas as partes da casa, frente e fundos.isso faz com que ela caminhe e então minimamente esforce suas pernas. braços também são solicitados para direcionar a água às plantas.com a idade os músculos do ser humano se tornam flácidos e fracos. uma atividade constante pode ajudar a reativar esses músculos e eles então tenderão a se estabilizar e se fortalecer, mesmo que minimamente. da mesma maneira nessa idade o corpo não demanda tanta energia e esse mínimo talvez seja o suficiente.
ao jogar água nas plantas ela pode, além de fortalecer os músculos, refletir sobre a natureza e sua beleza intrínseca. o florir, o brotar, o nascer. são experiências que ela já cansou de ver com as experiências da vida mas que podem ser estimuladas a partir desse contato com o dia em sua essência vital. o renascer é infinito.
outros aspectos são considerados nessa simples atividade diária com a água: gravidade, força, volume, fluidez, estado da matéria, fluxo, sentido de crescimento.
as plantas precisam dela. ela precisa das plantas. uma potencializa a vitalidade da outra.