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terça-feira, 4 de agosto de 2009

não existe um resultado único do processo


Uma das contribuições mais importantes das novas tecnologias aos processos da arte contemporânea foi a reconfiguracão da idéia de presença. Para acessarmos um trabalho de web-arte, por exemplo, precisamos estar presentes nos circuitos da rede. Sim, a idéia da virtualidade nunca expulsou a presença, apenas transformou e potencializou seus efeitos por meio da ubiqüidade dos sistemas hídridos da comunicação. O próprio conceito de interface inclui de maneira diferencial o espectador de outrora. Diante desta nova superfície na qual se multiplicam telas, programações e relações, a presença se intensifica enquanto força propulsora de trabalhos que acontecem por meio do diálogo. Claro, o teatro, a pintura, a fotografia e depois o cinema surgiam diante da nossa observação. Abandonar um filme no meio da sessão produz a sensação de interrupção de um encontro, uma regra prevista pelo artista e seu dispositivo. Então, qual seria a diferença tão proclamada hoje pelos adeptos dos novos usos da tecnologia na arte? A presença é móvel.
A mobilidade é apropriada pela arte de hoje a partir de duas lógicas: o fluxo dos circuitos comunicacionais e a inclusão dos deslocamentos motores e sensoriais do corpo. O que significa que por um lado, as alterações nos padrões de comunicação que se popularizaram nos anos 80, com a adoção do computador em rede, permitiram o fluxo de dados como nunca antes sonhado e, por outro lado, o corpo passa a ser pensado como um elemento que é parte do sistema. Ou seja, nos últimos anos vemos cada vez mais uma integração das duas lógicas na programação, por exemplo, de uma arte de vestir nas experiências do estilista Issey Miake[i] ou nas Vestis (corpos afetivos) da artista Luisa Donati[ii]. O que vestimos, portanto, não apenas é produzido a partir de tecidos inventados por programas (Miake), mas, ainda, podemos vestir trajes sensoriais que respondem a proximidade de outros corpos (Donati). Estamos então dentro e fora destes trajes estimuláveis. Outro exemplo, é o da arte que usa os sistemas de telefonia como maneira de acesso e produção do trabalho como opera a obra da artista Gisele Beiguelman.
O fenômeno de uma arte que se desloca no tempo e no espaço e que redefine a presença em sua relação com a obra se desdobra em muitas camadas de operações teóricas e experimentais. Neste texto, consideraremos algumas destas estratégias da obra de arte comtenporânea.


Relacionar
Jean-Louis Boissier em seu texto Imagem-Relação
1 descreve um novo acontecimento no campo da arte. Boissier pensa a imagem numérica dos trabalhos contemporâneos como uma imagem operacional aberta ao jogo interativo, esta imagem-relação solicita uma intervenção direta do seu destinatário como forma constitutiva da articulação de elementos que definem o processo da obra. O autor se apropria do uso terminológico da palavra relação como relato e como ligação. Este duplo sentido potencializa o conceito de relação em seus aspectos de modelização de uma estrutura interativa. Ou seja, o autor estende o conceito de Gilles Deleuze de imagem-relação, constitutiva da imagem-tempo, como maneira de pensar a relação como forma, duração e processo, logo de uso teórico e experimental. O fato de que os "objetos" da arte hoje podem resultar de cálculos e programações tornam possível que aquele espectador tradicional de imagens se transforme em operador de um sistema aberto cujos resultados dependem da maneira pela qual o acesso se presentifica no trabalho proposto. Portanto, se em um trabalho que opere pelo sistema de telefonia, por exemplo, não damos o output da mensagem a obra não se realiza, na medida em que nesta proposição artística a relação entre o input e o output é a forma. A obra interativa ocorre então no tempo em que nosso corpo está presente no sistema, esta presença é a que modeliza os elementos que integram a obra. Como afirma Boissier "a imagem-relação seria a presentificação direta de uma interação"2.
Acessar
Mas de que maneira pode este operador acessar a obra? Depende da programação pensada na origem. As obras interativas programadas atualizam um mapa de relações pensado pelo artista. Por mais que o sistema pareça aberto ao participador
3 na verdade muito é previsto pelo artista, este define inclusive as estruturas randômicas que serão utilizadas produzindo no visitante do sistema a impressão de acaso. As interfaces geradas por estes trabalhos produzem a qualidade deste acesso, neste caso a intensidade da presença é o suporte previsto pelos cálculos. A interface é uma programação que seduz o acesso. Cada movimento na tela,cada som emitido, cada cor, cada grafismo é uma pista para o desdobramento da obra.
No metrô de Tóquio um jovem quase caiu nos trilhos enquanto acessava um game em seu celular. Não podemos mais considerar determinados tipos de interfaces apenas como mediação e portanto como uma superfície de acesso a uma outra realidade, cada vez mais o que experimentamos é a incorporação de uma realidade híbrida que amplifica nossa presença por meio dos sistemas telemáticos. Habitamos mundos de naturezas distintas ao mesmo tempo, logo o acesso não é apenas um meio, mas uma passagem, como um portal que nos indica uma outra situação.

Multiplicar
Uma vez perguntaram à artista Lygia Clark quantas posições tinha o Bicho
2 ao que a artista respondeu:
- Eu não sei, você não sabe, mas o bicho sabe.
Esta anedota resume de maneira exemplar o que viria a ser a lógica da arte interativa. A arte além de ser

processual, o que já estava colocado pelos movimentos da arte como o Expressionismo abstrato,

a Arte Pop,

o Minimalismo,

o Neoconcretismo,

entre outros, viria a ser nos desdobramentos da arte eletrônica, uma arte do múltiplo. Não se trata apenas de seriar ou multiplicar os objetos, como nos processos industriais sempre discutidos pela arte, mas de multiplicar os acessos e resultados. Ou seja, quando acessamos uma obra por meio da navegação em um DVD-ROM, por exemplo, podemos entrar no trabalho de maneiras diferentes e também chegar a lugares diferentes. Muitas vezes, não existe um resultado único do processo, este é sempre múltiplo. Mais do que isto, o acesso à obra pode ser realizado por muitos participadores ao mesmo tempo. No mundo virtual construído por Gilberto Prado, por exemplo, muitos usuários se encontram no mesmo Desertesejo5 e trocam sensações e percepções do espaço virtual gerado pelo artista.


Parla, um trabalho do artista Guto Nóbrega multiplica corpos como vestes. Por meio de acesso sonoro a interface reage aos sons emitidos pelo participador, a cada ruído não apenas o corpo troca de roupa como também a roupa troca de corpo. A multiplicidade de usos de personagens e tecidos estrutura a obra multimídia como um fluxo que atende em tempo real a presença sonora do participador.


Outro tipo de resposta multiplicadora são programações que respondem a cada novo acesso de uma forma diferente ou ainda que a cada caminho transfomam ou reordenam o percurso.
O trabalho do artista argentino Iván Marino intitulada "In death's dream kingdom" opera com fragmentos de vídeo em variadas ordenações que sobrepõem a imagem em sua forma ampliada. Cada aspecto do corpo que se movimenta é focalizado e embaralhado pelo usuário.
A possibilidade de multiplicar a forma das obras interativas acontece a partir da relação, ou seja, de um tempo e naração possível entre o artista, o participador e a obra como faces de um mesmo dispositivo.

Deslocar
A arte é sempre deslocamento. O famoso quadro As meninas, de Velásquez, (1656) mostra um pintor que se desloca da tela que pinta para olhar para nós espectadores. A pintura indica não só uma ação, mas uma interrupção em um processo em função da nossa presença. Não apenas o olhar do pintor, mas a troca de olhares entre os personagens da pintura nos colocam no centro da trama que se desenvolve. Hoje as instalações contemporâneas respondem diretamente a nossa presença por meio de lógicas interativas que integram o uso de computadores e sensores na busca de nossas sensações.
Um dos trabalhos apresentados no Ars eletronica em 2003, intitulado Access de Marie Sester, consistia em um site que permitia o uso anônimo de um sistema de localização conectado a um refletor robótico. O foco de luz perseguia o espectador no espaço expositivo. Esta imagem apresenta a situação de uma presença aumentada em que a arte, por meio de diferentes dispositivos potencializa as relações de espaço-tempo do participador como agente da obra que se forma. Embora hoje a arte circule nos circuitos das redes ela nunca atua por meio de uma presença à distância, mas na presença que abole a distância. A poética desta obra reside em tornar o espectador em luz, ou seja, em energia que ilumina a própria arte.1 BOISSIER, Jean-Louis.
L' image relation, In: La relation comme forme, Mamco, Genebra, 2005.volta ao texto2 Ibid., p. 274.volta ao texto3 Conceito criado pelo artista Hélio Oiticica para pensar uma nova relação entre o espectador e a obra.volta ao texto4 Obra neoconcreta formada por placas de alumínio articuladas por dobradiças realizadas para serem manipuladas pelo espectador. volta ao texto5 Obra criada pelo artista Gilberto Prado que mistura a lógica dos games eletrônicos à poética das redes.


[ii] Luisa Paraguai Donati, em sua pesquisa sobre “computadores vestíveis” premiada pelo Itaú Cultural, escreve sobre Edward Hall, teórico do uso do espaço informal pelo homem em suas relações sociais. Ele definiu o que chama de zonas “proxêmicas”: espaço íntimo, para abraços e sussurros (15cm a 46cm); pessoal, para conversas entre bons amigos (0,5m a 1,2m); social, para conversas entre pessoas (1,2m a 3,6m); e público, para discursos (3,6m ou mais).

“Nós dois estamos aqui, numa conversa profissional, mas poderia ser entre amigos ou em família. Conforme o grau de afinidade e o contexto, uma pessoa pode se aproximar ou se afastar da outra. É uma relação espacial que também depende da cultura: durante uma conversa, o inglês se posta diferentemente do brasileiro”, observa a pesquisadora. Mesmo que Edward Hall leve em conta estas diferenças culturais, Luisa Donati pretende se valer da visualidade destes espaços interpessoais estabelecidos por ele para nortear um projeto ainda no papel, mas que já um tem título: “Vestis”.

Como mostram as ilustrações desta página, produzidas pela própria pesquisadora, “Vestis” é uma estrutura formada por diversos aros metálicos, formando uma unidade, mas que permite extensões e contrações de cada aro de maneira independente. Tais movimentos são determinados por sensores e controlados por micromotores, garantindo à estrutura uma forma dinâmica. Toda a movimentação será gerenciada por um aplicativo, a partir de impulsos enviados por participantes remotos e usuários da Web. Pretende-se, assim, através de “Vestis”, formalizar esteticamente estas espacialidades corpóreas, que se expandem e contraem a partir das interações estabelecidas.


“A idéia deste projeto é compreender estas relações espaciais, considerando que hoje a possibilidade de mediação tecnológica transforma o corpo e projeta sua ação, propondo outras atribuições para o significado de distância/proximidade, visibilidade/tactibilidade. Ao experimentar os aros contraindo e expandindo, impedindo ou ampliando os movimentos, reformulando o contorno físico da gente, este espaço de atuação que não é só metafórico passa a ser perceptível. Há pessoas mais contritas, contidas e outras que gesticulam e jogam os braços, e isto diferencia o entendimento deste espaço corpóreo. ‘Vestis’ irá mediar a relação entre as pessoas no espaço – que poderão se aproximar, se afastar ou tocar os aros – e os participantes via internet – que vão ‘existir’ por meio de sons”, explica Luisa Donati.